quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Filhotes da multidão

[Jonathan Menezes, do blog Escrever é Transgredir]

O filósofo existencialista Soren Kierkegaard, expressando sua inconformidade com o sistema, escreveu: “A multidão é mentirosa [...] mesmo se cada indivíduo, em sua privacidade, estivesse em poder da verdade, quando este se juntasse à multidão [...] a mentira surgiria”. Uma afirmação como essa pode parecer, num primeiro momento, paradoxal. Afinal, em uma cultura como a nossa, “de massa”, onde os valores (existenciais, institucionais, individuais ou coletivos) são mensurados quantitativamente, em que os números ditam as regras por terem um forte poder simulador de credibilidade, em que palavra crescimento (ou expansão) exerce um fascínio avassalador sobre as pessoas, apesar de quase nunca co-existir com a integridade, enfim; dizer algo desse tipo é ferir uma espécie de quase-unanimidade.


Nelson Rodrigues disse certa feita que se todos concordarem com você nisto ou naquilo, pode saber que alguma coisa está errada. Seria por demais arriscado “con-formar-se” com sua famosa máxima de que “toda unanimidade é burra”? Por outro lado, quem se arriscaria em defender, por exemplo, que todos os políticos eleitos pelo voto popular (seja unanimemente, seja maioritariamente), sempre exercem seus mandatos com decoro e ética ao invés de corrupção? Ou então, quem poderia sinceramente dizer que todo produto o qual adquire a insígnia de “best-seller” (mais vendido), também é sinônimo de qualidade?


Conta-se em um mito popular, que certa vez foi dito aos romanos que se não fosse possível construir uma bela casa, que se construísse uma casa bem grande. Para Eugene Peterson, tal lógica ainda faz sentido em nosso dias, isto é: “se não posso fazer bem, então devo fazer grande”. Mas diante de um crescimento espantoso alguém poderia talvez justificar: “alcançamos a quantidade com qualidade”. Ora, mas qual seria o idiota que se prestaria em afirmar o contrário?Portanto, nós, seres do hoje-em-dia, somos filhotes da multidão, isto é, indivíduos forjados e protegidos pela multidão, sujeitos às “frivolidades” e “desumanidades” propagadas pela multidão. E aqueles que, porventura, ousam se negar a compactuar com os gostos e hábitos da multidão são como “estranhos no ninho”, “patinhos feios” destoando da “grandeza” do que é comum. Nas multidões de nossa cultura ocidental, dita pós-moderna, encontramos cada vez mais cifras, números, códigos, edificações, etc., e cada vez menos pessoas.

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